sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Poema em linha recta


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos tem sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão - príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Não.. são todos o Ideal, e o que eu oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?
Então só eu e que sou vil e me engano nesta terra?
Poderão as mulheres não os ter amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

2 comentários:

Aiedail disse...

Fomos todos vis algumas vezes e somos todos ridículos quase sempre...

Anónimo disse...

"E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre." Miguel Sousa Tavares

E há quem diga que o Miguel Sousa Tavares é altivo e arrogante... pois... eu acho que ele e o José Rodrigues dos Santos são provavelmente os melhores escritores portugueses da actualidade...
Mas logo a seguir vem a Carolina Salgado... que a literatura portuguesa tem disto!
Tirem-me deste filme...a verdade é mesmo essa, menina Cláudia! Somos ridiculos quase sempre... está-nos no sangue:((((